Inventores da cultura do Guaraná, os Sateré-Mawé transformaram a Paullinia Cupana, uma trepadeira silvestre da família das Sapindáceas, em arbusto cultivado, introduzindo seu plantio e beneficiamento. O guaraná é uma planta nativa da região das terras altas da bacia hidrográfica do rio Maués-Açu, que coincide precisamente com o território tradicional Sateré-Mawé.
O guaraná é o produto por excelência da economia sateré-mawé, sendo, dos seus produtos comerciais, o que obtém maior preço no mercado.
A primeira descrição do guaraná e sua importância para os Sateré-Mawé data de 1669, ano que coincide com o primeiro contato do grupo com os brancos. O padre João Felipe Betendorf descrevia, em 1669, que "tem os Andirazes em seus matos uma frutinha que chamam guaraná, a qual secam e depois pisam, fazendo dela umas bolas, que estimam como os brancos o seu ouro, e desfeitas com uma pedrinha, com que as vão roçando, e em uma cuia de água bebida, dá tão grandes forças, que indo os índios à caça, um dia até o outro não têm fome, além do que faz urinar, tira febres e dores de cabeça e cãibras".
© Sônia da Silva Lorenz
O comércio do guaraná sempre foi intenso na região de Maués, não só o realizado pelos Sateré-Mawé, mas também pelos civilizados. A procura deste produto deve-se às propriedades de estimulante, regulador intestinal, antiblenorrágico, tônico cardiovascular e afrodisíaco. No entanto, é como estimulante que o guaraná, depois de beneficiado, é mais procurando, pois contém alto teor de cafeína (de 4 a 5%), superior ao chá (2%) e ao café (1%).
Existe uma distinção entre o guaraná de excelente qualidade beneficiado pelos Sateré-Mawé - chamado guaraná das terras, guaraná das terras altas e guaraná do Marau - e o guaraná beneficiado pelos civilizados na região de Maués, chamado guaraná de Luzéia - antigo nome desta cidade -, de qualidade inferior porque produzido sem os conhecimentos e apuro das práticas tradicionais dos índios. O guaraná das terras sempre foi o mais procurado e, no entanto, os Sateré-Mawé vendem, no máximo, duas toneladas do produto por ano, e apenas nos anos de excelente safra. Já o guaraná de Luzéia, muito inferior, é produzido em larga escala; só uma empresa de comercialização do produto em Maués afirma vender 40 toneladas anuais
Preparo e consumo do Guaraná
O çapó, guaraná em bastão ralado na água, é a bebida cotidiana, ritual e religiosa, consumida por adultos e crianças em grandes quantidades. O preparo e consumo do çapó seguem uma série de práticas que somadas resultam em uma sessão ritual. A natureza do ritual de consumo do guaraná é, porém, diversa da de um ritual formal, como são a da Festa da Tocandira ou a da leitura do Porantim. Uma sessão de çapó foi descrita por Anthony Henman: "Essas práticas são essencialmente as mesmas em todas as circunstâncias, tanto se o çapó for preparado para o círculo familiar mais íntimo, ou para um encontro de todos os homens adultos durante uma festa ou reunião política. Cabe à mulher do anfitrião ralar o guaraná, operação feita com uma língua de pirarucu ou uma pedra lisa e quadrada de basalto. Uma cuia aberta da espécie Crescentia cujete é colocada em cima de um suporte chamado patauí e enchida de água até um quarto do seu volume total. A ação de 'ralar' o guaraná molhado não busca a transformação do bastão em pó, como ocorre com o guaraná seco.
Antes, trabalha-se o guaraná para que se forme uma baba, uma viscosidade que adere ao ralo e ao pedaço do bastão em uso, sendo dissolvida n'água mediante a periódica submersão dos dedos da raladora.
Depois de preparado, o çapó é de novo diluído com água guardada ao lado da "dona" do guaraná em uma cabaça da espécie Lagenaria siceraria. A cuia, já a essas alturas cheia até um pouco mais da metade de çapó, e entregue pela mulher ao seu marido, que toma apenas um pequeno gole antes de passá-la aos outros presente, normalmente prestigiando os mais velhos ou alguns visitantes importantes, se os houver. Daí em diante, a cuia passa de mão em mão observando a proximidade física dos participantes, e não um rígido esquema de hierarquia, sendo acompanhado durante as sessões noturnas por um grande cigarro de tabaco enrolado numa casca de árvore. O nome tauarí indica tanto o cigarro feito, como a casca e a própria árvore (Couratari tauary).
Nem sempre a cuia e o tauarí fazem uma volta circular, sendo mais comum que passem em uma linha reta de um participante ao próximo, voltando pela mesma linha até chegar de novo nas mãos do dono. Quando são muitas as pessoas presentes, observa-se a formação de duas ou mais linhas deste tipo, já que uma só cuia raramente é tomada por mais de oito ou dez pessoas. O participante que não tiver muita vontade de tomar guaraná não irá rechaçar a oferta da cuia, mas manterá as formalidades, bebendo um golinho mínimo para não ofender o anfitrião. Outro detalhe importante é que ninguém acaba a bebida que tiver na cuia, e mesmo se receber uma quantidade mínima, cuidará de deixar sempre um resquício para devolver ao dono. Só este é que tem o direito de encerrar formalmente a sessão de çapó; o que ele pode fazer pessoalmente, ou passando o restinho para um membro de sua família, acompanhado pela frase wai'pó ("olha o rabo").
Durante o intervalo em que a cuia circula entre as pessoas presentes, a mulher do anfitrião continuará esfregando o pedaço de guaraná contra o ralo, juntando uma baba que será prontamente dissolvida na água assim que a cuia voltar às suas mãos. Cabe observar que cada sessão da çapó tem várias rodadas da bebida, ou seja, a mulher do dono da casa (ou sua filha, ou sua neta) irá preparar várias cuias de çapó conforme a disposição dos visitantes e familiares para tomar çapó e conversar.
O çapó é a bebida que os Sateré-Mawé utilizam durante seus resguardos. As mulheres durante a menstruação, gravidez, pós-parto e luto e os homens na Festa da Tocandeira, no luto e quando acompanham suas mulheres durante o resguardo do pós-parto.
Pode-se dizer que é durante o fábrico, termo regional também utilizado pelos Sateré-Mawé para indicar as várias etapas do beneficiamento do guaraná, que a vida social se intensifica. A partir do que observamos, o fábrico potencializa ao máximo a maneira de ser desta sociedade, trazendo para a vida social cotidiana toda uma gama de fenômenos que se encontram ocultos ou obscuros em outras épocas do ano. É um período que se renova a cada ano com a chegada da colheita do guaraná, permitindo aos Sateré-Mawé comungarem com sua gênese mítica, revigorando-se etnicamente.
Cristina ralando çapó
© Sônia da Silva Lorenz
O ritual da Tocandira coincide com a época do fábrico e dura aproximadamente 20 dias. Os índios referem-se a este ritual como "meter a mão na luva", também conhecido pelos regionais como "Festa da Tocandira". Trata-se de um rito de passagem - onde os meninos tornam-se homens - de extraordinária importância para os Sateré-Mawé, com cantos de exaltação lírica para o trabalho e o amor, e cantos épicos ligados às guerras. As luvas utilizadas durante este ritual são tecidas em palha pintada com jenipapo, e adornadas com penas de arara e gavião; nelas, o iniciado enfia a mão para ser ferroado por dezenas de formigas tocandiras (Paraponera clavata).
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